A falta que um SUS faz

Ano passado minha filha mais nova teve bronquite asmática. Normalmente a bombinha e nebulização resolvem mas não desse vez. Falamos com a pediatra e ela nos mandou ir direto pra emergência para ela tomar oxigênio lá. Foi o que fizemos.

Emergência nos EUA é bem parecida com emergência nas grandes cidades do Brasil: tem bastante gente e o atendimento demora (espere passar um mínimo de 1h lá pra qualqer coisa). Ela tomou a oxigênio e depois de preenhcer papelada do plano, saímos.

A conta chegou depois, pelo correio: U$4500.00 (quatro mil e quinhetos dólares). Calma! Como eu tenho plano de saúde, para o qual eu já pago uma mensalidade fixa descontada do meu salário, eu só tive que pagar US$250.00. Olha como foi bacana!

Um amigo teve filho a pouco tempo. A conta hospitalar foi de US$250,000.00 porque o parto teve algumas complicações mas se fosse um parto sem complicações teria custado ainda entre 30-50 mil. Pagou também apenas a franquia de US$250,00

Sem dúvida um dos maiores choques culturais que eu e minha família passamos aqui nos EUA foi com o sistema de saúde. Além de não existir um SUS, TODOS os planos de saúde para pessoas com menos de 65 anos implicam em co-participação, dedutíveis e franquias.

Vou ser mais explícito. O plano que eu pago para minha família inteira custa US$200,00 por mês. Se eu fizer consultas com clínicos gerais, eu pago nada a mais de extra. Se for com especialistas (qualquer não-clínico geral), eu pago entre 20-40 dólares de dedutível por consulta dependendo da especialidade. Qualquer ida a um ambulatório (aqui chamam de Urgent Care) custa US$40,00 e emergência custa U$250,00.

Ah, mas ainda tem a franquia! Na verdade, eu paguei US$550,00 naquela ida a emergência porque existe uma franquia de US$300,00 (pensa franquia de seguro de carro) que eu preciso pagar na primeira ida de alguém da família.

O meu plano, em particular, não tem co-participação. Mas em planos mais baratos, além deses valores que eu falei, cobram também 10% (ou mais) do valor da conta. Então nesse plano eu teria pago 250 + 300 + 450 = US$1000 na primeira ida a emergência!

Por fim, existe um limite que eu pago por ano, que também depende do plano. No meu caso, eu pago no máximo US7500,00 por ano e a partir desse valor todas essas franquias e co-participações não são mais cobradas.

Por conta desses valores a gente tende a fazer o máximo de consultas com clínico geral, tenta resolver o que dá pelo Urgent Care e só em último caso vamos para a emergência. Só que tem coisas como receber oxigênio, tirar raio-x, que você só consegue fazer na emergência. Outro dia minha esposa deixou uma cadeira cair no pé e esperamos até o outro dia pra ir na emergência para ver se a dor passava porque US$250,00 é dinheiro.

Na prática você tem que ter sempre dinheiro guardado para cobrir essas emergências senão pode correr risco de faltar dinheiro. Nós fazemos isso, mas o impacto psicológico agora de ficar doente é maior porque necessariamente implica em gastar dinheiro, ao contrário do Brasil onde isso nem passava pela minha cabeça.

Como aqui não tem sistema de saúde pública, a realiade é que você não tem direito a ficar doente caso esteja desempregado. Se você for a uma emergência eles vão lhe atender, mas vão mandar a conta depois pelo correio e você agora terá uma dívida alta com um hospital, limitando seu acesso a crédito e tornando sua vida bem mais difícil. Por conta disso, muitos aceitam qualquer tipo de emprego para diminuírem o risco de irem a falência com dívida de saúde.

Reclamem bastante do SUS para que ele melhore, mas ele existe e provê além de atendimento gratuito, muitos remédios caríssimos que mesmo quem tem emprego não teria condições de pagar. Sem falar que quase todos os tratamentos de câncer no país são feitos pelo SUS, gratuitamente. Coisa inimaginável aqui.

Então aproveitem enquanto o SUS existir e planos sem co-participação ainda são possíveis aí. Mas até quando?

 

*** Correção: o amigo me falou que, na verdade, a conta foi de ~US$250,000.00 e não de US$100,000.00 como originalmente dito.

Meu feudo, minha vida: por que Bolsonaro tem tanto apoio?

Eu escrevi esse texto no facebook no dia 17 de Setembro de 2018. Resolvi incluir ele aqui porque fala da organização de uma casa i.e como o trabalho é dividido. Deixei a parte sobre Bolsonaro porque ainda acho uma ligação interessante, mas o principal do texto é realmente sobre trabalho, seguindo a linha do texto anterior.

Para quem não leu, espero que goste! Para quem já leu, comenta aí o que você acha dele quase 1 ano depois 😉

******

Vocês já pararam pra olhar como uma casa é organizada? Quem é responsável por fazer a comida, limpar, organizar o dia-a-dia de quem mora nela? Em particular no Brasil, existem 3 grande categorias de organização e entendê-las que pode ser mais um elemento para explicar por que candidatos como Bolsonaro recebem tanto apoio apesar dos problemas óbvios.

A primeira categoria é a da Tradicional Família Brasileira (daqui pra frente TFB), onde o homem trabalha e a mulher fica em casa e é responsável por 100% do funcionamento da casa.

A segunda envolve uma empregada doméstica (sempre uma mulher e em sua maioria, parda ou negra) que recebe um salário para ficar na casa 8 horas por dia limpando, cozinhando e arrumando (daqui pra frente EMPD). Tipicamente a administração/organização ainda fica a cargo da família (da mulher em quase 100% dos casos) então a empregada apenas recebe as ordens e as executa.

A terceira é quando todos que moram na casa dividem as tarefas, discutem quem vai fazer quais tarefas para a casa além das suas próprias, como e quando. Uma espécie de cooperativa de trabalho (daqui pra frente COOP). Essa organização é bem comum em repúblicas e se você fizer um esforço mental, pode considerar que pessoa que moram sozinhas também se encaixam nessa categoria, já que precisam fazer tudo na casa.

Claro, existem várias nuances aí. A TFB e a COOP podem contratar uma faxineira que vem 1-2x por semana para ajudar. Nas COOP, alguém pode ficar responsável por decidir tudo sobre a organização e executar menos tarefas que os outros para compensar. O homem pode fazer algumas tarefas na TFB mas considera como ajuda, não divisão. As possibilidades de combinações são numerosas, mas vamos focar nas 3 grandes categorias.

O castelo do homem

Na TFB, o homem não trabalha em casa. Ele traz o dinheiro pra casa e para conseguir ter tempo para isso ele precisa que a mulher trabalhe para a casa. Ela faz o trabalho necessário para ela e para o marido (e os filhos se tiver). O marido chega em casa e espera encontrar tudo “em ordem”, pois está cansado e não tem mais energia para lidar com a casa.

Já repararam como isso é semelhante a uma sociedade feudal? Sim, aquela mesma dos reis com os servos que você (espero) aprendeu na escola. O rei não trabalhava (nem os lordes, os barões, os duques, etc). Eles tinham vários servos que moravam em suas terras. 3 dias por semana os servos trabalhavam nas terras do rei e o que fosse produzido era de propriedade do rei. Nos outros 3 trabalhava num pedaço de terra cedida a ele pelo rei/lorde/etc e o que fosse produzido era todo dele e no 7 dia ele descansava 

Transpondo para a TFB, a mulher realiza o trabalho necessário (cozinhar, lavar, passar, limpar, cuidar dos filhos) para ela se manter e mais um extra em cada uma dessas atividades que é a parte do homem, mas que ele não vai fazer porque já passou o dia todo fora trabalhando.

E o que ela recebe em troca? Uma casa, uma vida estável, dependendo da condição econômica da família ela compra produtos, viagens para ela. Enfim, ela ganha algo do marido, seu “senhor feudal”, mas não um salário. Ela não é paga para trabalhar: é esperado que ela trabalhe e em troca ganha uma vida (supostamente) estável.

Capitalismo doméstico

Com o advento das mulheres na força de trabalho, de quem era agora a responsabilidade de trabalhar na casa? A herança escravocrata nossa trouxe a solução: mão de obra assalariada e muito barata que precisa de dinheiro e que pode trabalhar nesses serviços. Na EMPD, a casa é organizada como uma empresa, onde uma empregada é paga para trabalhar nela. Todo dia ela trabalha de 8 horas (as vezes mais), realizando todas as tarefas que os donos da casa não tem mais tempo para ou não querem fazer e depois volta para sua casa, deixando todas as ferramentas necessárias para o trabalho na casa do(a) patrão(oa).

Historicamente empregadas domésticas são a classe trabalhadora mais explorada no Brasil, apenas recentemente adquirindo direitos comuns a outros trabalhadores (FGTS, horas extras). É considerada uma categoria de trabalho “menor” pois faz trabalho não-especializado, manual, o que nunca foi valorizado no Brasil porque esse era o trabalho feito pelos escravos.

Uma variação aqui seria a da faxineira: os donos da casa realizam trabalho doméstico mas contratam uma empregada que realiza uma parte do trabalho 1-2x por semana, para diminuir o peso do trabalho.

Cooperativa de trabalho

Se você já morou numa república de qualquer tipo, esse é provavelmente o modo de organização da casa que você conhece: as tarefas são divididas entre os moradores da república, todos fazem a sua parte (o que você precisa + o que foi acordado do trabalho compartilhado) e todos discutem o que precisa ser feito para manter a casa em ordem.

Algumas famílias tradicionais também se organizam assim, mesmo que ambos trabalhem fora. Isso vai se tornar cada vez mais comum na medida que crises econômicas forcem a demissão das empregadas domésticas das casas de classe média e a mulher não aceite fazer tudo sozinha.

Cooperativas de trabalho funcionam exatamente desse jeito, onde todos os trabalhadores precisam decidir como as tarefas de produção são divididas, o que vai ser feito com o lucro obtido pela cooperativa através do trabalho de cada indivíduo. Pessoas que moram sozinhas se enquadram nessa categoria também, apenas elas tomam as decisões sozinhas.

Feudos, empresas e autocratas

Se você viveu em uma casa onde a organização era TFB ou EMPD, então você reconhece como normal que alguém é sempre responsável por toda a organização doméstica. É normal que você não tenha que fazer isso porque sempre teve alguém que fizesse para você. É normal que ao casar esteja implícito a sua posição na organização da casa. E é normal que esse tipo de trabalho seja considerado “inferior”.

Mudar essa normalidade exige um esforço grande e reconhecer que o que é normal não é necessariamente o melhor. Quem é forçado a mudar vai sempre resistir, principalmente se isso implica assumir a posição considerada inferior. Então uma reação natural a isso é procurar respaldo externo. E é aí que entra o inominável, o #elenão, o Bozo, o “dei uma fraquejada e tive uma menina”. Ele representa a legitimação dessa resistência contra a “desnormalização” da sociedade. A resistência “contra os valores da família”.

O fato dele ser racista, homofóbico, misógino é só uma confirmação de que ele considera TFB e EMPD o modo normal de se viver e qualquer outra coisa que desvie disso é colocar em risco o posicionamento normal da sociedade. Então muitos dos seus apoiadores vão racionalizar as declarações racistas, homofóbicas e misóginas dele de alguma forma porque a manutenção de uma organização normal é mais importante. Ou não, vão simplesmente concordar e dizer que é isso mesmo, negro é tudo marginal mesmo, gay tem mais é que apanhar pra virar homem e mulher tem mais que lavar a louça e dar graças a deus que tem um marido e uma casa.

Eu falo da organização da casa porque tudo tem influência em tudo e ao ignorar a casa estamos ignorando uma grande fonte de normalização de hierarquia e autocracia. Quem consegue fazer a transição de TMB ou EMPD para COOP é porque conseguiu passar pela sua resistência ao normal e aprendeu algo novo sobre sociedades. Muitas vezes essa transição acontece em paralelo com as outras transições que tornam a pessoa menos racista, homofóbica e misógina e uma influencia a outra.

Por exemplo, o divórcio como instrumento legal foi uma das maiores forças transformadoras da organização da casa. Mulheres terem o poder de partir da palavra (“não quero mais viver assim nesse casamento”) ao ato (“assina o divórcio”) precipita essa mudança na organização da casa e é esse tipo de poder que #elenunca é contra que minorias tenham. Porque se mulheres podem mudar o que é normal, imagina quando gays, negros, trans também puderem?

Se o trabalho é social, por que me sinto sozinho?

Da última vez que escrevi eu ainda morava no Brasil de Temer (saudades, Dilmãe!). 6 meses depois eu me mudei com a família para a AMÉRICA (rsrsrsrs) e acá estou a pouco mais de 1 ano vivendo e trabalhando. Eu tenho muita, muita coisa pra falar daqui e vou dedicar vários posts sobre essa mudança de vida, começando por esse.

Viver na AMÉRICA é, sem dúvida, viver sozinho. Veja, fizemos várias amizades e essa rede de amigos (majoritariamente) imigrantes se ajuda o tempo todo, mas o dia-a-dia é sozinho. Na empresa, por exemplo, quase não se fala de outros assuntos que não sejam dinheiro e trabalho (comentei com amigos isso falando o óbvio: “pessoal aqui é muito capitalista, né?”). Eu precisei forçar mudança de assunto várias vezes para não precisar trabalhar enquanto almoço (sim, falar de trabalho é trabalhar no meu dicionário). Hoje tenho um grupo de colegas que almoça junto 3x na semana e quase sempre falamos de não-trabalho.

Ênfase no colegas porque ninguém aqui (com algums exceções) tem amigos no trabalho. O que para mim é super estranho porque, veja bem, se eu passo 8 horas do meu dia com um caba do meu lado, por que raios esse caba não pode ser meu amigo? A resposta superficial é que aqui trabalho é trabalho, amigo é amigo. Seu colega é apenas isso: um colega. Você conversa com ele… sobre trabalho. Se fosse seu amigo, não estaria trabalhando com ele. Simples assim.

Mas por baixo disso tem uma constatação fundamental: trabalho aqui não é visto como um ato social.

Eu estou simplificando porque trabalho, por definição, é um ato social exceto quando o trabalho é feito para a própria pessoa. Se eu morasse sozinho e arrumasse minha casa, cozinhasse, lavasse minhas roupas, todo esse trabalho é em benefício próprio.

Mas como eu moro numa casa com minha família, qualquer trabalho que qualquer um de nós fizer na casa vai ser um ato social. Eu lavo os pratos de noite não só porque eu quero ter pratos limpos para usar no dia seguinte, mas porque tem mais 3 pessoas que também querem. Se minha filha arruma o quarto dela não é só porque ela quer a cama  em ordem mas porque todos nós quermos uma casa limpa e arrumada.

Trabalho é um ato social e é a cola que une famílias, amigos e sociedades (não lembro quem disse isso mas não foi eu que inventei). Voltando para a empresa, se o trabalho não é visto como social, como ele é visto então?

Apenas como uma relação econômica! 

Eu trabalho porque eu preciso ganhar dinheiro e as pessoas que trabalham na mesma empresa fazem o mesmo. As pessoas de quem eu dependo para que meu trabalho não pare vão me ajudar porque eles se beneficiam economicamente do meu trabalho e vice-versa. Precebe como só falei de dinheiro nesse parágrafo? Acho que agora dá pra entender o porque dos assuntos dominantes no almoço.

Quando você encara o trabalho apenas como uma relação econmômica, você deixa de viver em sociedade por 8 horas no seu dia. Para alguns, isso é besteira. É até mais eficiente!. Para outros isso pode levar a depressão. Nós somos bichos sociais e por mais nerd que alguém seja é impossível viver bem sem um círculo social, mesmo que pra isso você tenha que ficar sentado, almoçando calado, escutando pessoas conversarem como eles refinanciaram a casa para pagar menos juros mesmo tendo que pagar mais taxas no processo porque em menos de 3 anos os juros menores pagam essa diferença e depois dá para descontar tudo do imposto de renda e…..

 

 

Anarco-capitalismo?

Faz tempo né? 😉

Outro dia eu fiz uma pergunta no face: “Em que momento Anarco-capitalismo ficou na moda, hein??

Sério mesmo, de uns tempos pra cá começou a aparecer um monte de posts/comentários de pessoas que se identificam com anarco-capitalismo (ancap para os íntimos) e quanto mais eu lia mais eu não conseguia entender por que pessoas (em especial jovens  brancos de classe média) achavam ancap a 8a maravilha do mundo.

Antes disso, eu andei lendo um bocado sobre anarquismo e suas vertentes mais comuns, anarco-comunismo e anarco-sindicalismo. Então os conceitos anarquistas do ancap me são familiares mas a parte do cap? Parece totalmente errado!

Anarquistas são anti-governo. Eles acham que uma sociedade é capaz de se auto-organizar e que qualquer estrutura hierárquica tende a oprimir quem ela deveria servir e levar à desigualdade profunda.

Como eles vão se organizar e se manter sem um governo depende da parte do nome que vem depois do anarco-. Os anarco-comunistas querem…. comunismo 🙂 Os anarco-sindicalistas querem sindicatos fortes que representam os interesses dos trabalhadores em cada região e que eles colaborem via federeções. E isso eventualmente levará ao comunismo.

Notem que falei trabalhadores e não profissionais. Parte significativa dos problemas dos sindicatos de hoje é o fato de se organizarem em volta de profissões.

(tô simplificando bastante, gente. Tem bem mais coisas envolvidas. Dois bom livros sobre o assunto são “Anarchosyndicalism – Theory and Practice” e  “On Anarchism“).

E os ancaps? Bom, eles querem o “bom e velho” capitalismo, com um mercado livre, onde todos que quiserem algo vão ter que financiar seus desejos. No lugar de governo, empresas que competirão num livre mercado puro garantirão o futuro de todos porque o mercado é perfeito.

Olha, toda vez que eu discuto anarquismo com alguém eu tenho uma dificuldade enorme de explicar como a sociedade vai se organizar sem governo, porque tem um elemento de governo que todos esquecem e que é crucial em qualquer sociedade: quem é o dono do poder?

No comunismo e no sindicalismo essa pergunta nunca é realmente respondida. Quando os autores falam de federações, conselhos, delegações, eles falam de poder distribuído onde nenhum grupo tem o poder completo e depende dos outros para que decisões possam ser tomadas. Na prática, isso significa bastante comunicação para que diferenças possam ser resolvidas.

Isso é bem mais difícil de fazer em sociedades grandes (milhões de pessoas) do que um governo central hierárquico que tem poderes claros para planajer a vida das pessoas (e nisso se inclui todas as formas de governo atuais: capitalistas, democráticos, socialistas, ditatorias).

(Novamente eu estou simplificando pra caramba. Se você quer entender melhor como sociedades não-hierárquicas funcionam ou funcionaram, sugiro o excelente livro “Anarchy Works“).

O ancap, pelo que eu entendi, acaba sendo fácil de digerir porque deixa muito claro quem está no poder: as empresas/corporações. Ou seja, o poder sai de um governo central que em princípio deveriam atendar a maioria da população para um governo de empresas que, como sub-produto do livre mercado, deveria atender aos anseios da população.

Notem que eu falei “deveria atender” e não “atenderiam”. Essa foi uma escolha deliberada porque os ancaps optariam por “atenderiam”. “deveria atender” faz mais sentido porque num governo capitalista o objetivo final nunca é o que é melhor pra sociedade e sim o que dá mais lucro para o capitalista. Pode ser que esses dois objetivos se alinhem, daí porque eu chamei de sub-produto do mercado livre. Mas o objetivo final é o lucro do capitalista e se ele estiver ameaçado ele vai se sobrepor aos interesses da sociedade.

***

Mas eu ainda não respondi a minha própria pergunta: Por que jovens estão se identificando tanto com anarco-capitalismo? Por que um sistema que remove qualquer benefício que um governo central poderia ter em termos de beneficiar uma sociedade, ganha popularidade entre jovens brancos de classe média?

Meritocracia.

O discurso ancap casa bem com o discurso meritocrático. Se você consegue mostrar que ancap é mais meritocrático do que um sistema de governo central ou uma sociedade comunista, você ganha seguidores aos milhões da noite pro dia. E esses seguidores necessariamente tem acesso 24hrs a mídias sociais que são os verdadeiros veículos de propaganda de hoje em dia.

The Matrix Of The Opressed, parte 2 – Wake Up

Este é o segundo post de uma série sobre a Trilogia Matrix e como eu passei a encarar o filme depois de ter lido Pedagogia do Oprimido. 

Na primeira parte eu falei sobre as  coisas que me marcaram quando assisti o primeiro filme em 1999. Mas teve uma que eu não falei que foi sobre a música que fecha o filme: Wake Up de Rage Against the Machine (RATM).

Eu já conhecia RATM antes de assitir Matrix mas nunca tinha prestado atenção nas letras das músicas, pois eu sempre escutava músicas pela melodia; as letras eram apenas para cantar, não para entender. Bem, Wake Up (que significa Acorde em Inglês) era a palavra de ordem que eu precisava e que só teve efeito muitos anos depois com Pedagogia do Oprimido

Ali estava em um filme de ação com fundo filosófico as teorias de Paulo Freire bem descritas, praticamente desenhadas, sobre opressão, opressor, revolução, radicalismoe e luta de classe. Vamos por partes 🙂

Primeiramente, Neo não é o personagem mais interessante do filme. Sim, ele é o personagem principal e o filme é sobre a história dele, mas quem faz a história andar é Morpheus, o líder negro da revolução humana contra as máquinas. Não é uma coincidência Morpheus ser negro (e homem, mas isso a gente sabe porque): o povo negro tem séculos de história de luta contra opressão, primeiro como escravos e depois, com a abolição da escravatura, para ter os mesmos direitos que os brancos (e que persiste até hoje).

4e640e4c3a57acaca4dcfb35bda1e763
Essa é sua última chance…. Depois disso não tem volta. Você toma a pílula azul e a história acaba. Você acorda na sua cama acreditando no que você quiser acreditar. Ou você toma a pílula vermelha, fica no País das Maravilhas e eu te mostro até onde o buraco do coelho chega.

Morpheus, o negro, é quem oferece a Neo, o branco, a pílula vermelha, desvendando para ele quem são os opressores e como eles atuam. Note que é preciso primeiro aceitar a pílula para só então entender a Matrix. O paralelo é bem óbvio: é impossível ignorar a opressão quando você aprende a identificá-la. O que significa que é também o momento que a neutraliade morre, pois agora ser neutro é aceitar a opressão.

Ao aceitar a realidade Neo passa por treinamento de guerrilha, aprendendo a lutar, atirar e a se infiltrar no mundo dos opressores sem ser notado. Ao libertar sua mente, Neo aprende, entende e questiona sua realidade, levando-o a lutar contra a Matrix e as máquinas. Morpheus se refere a Matrix como O Sistema. Nesse caso O Sistema é um programa de computador e em particular ele diz que “O Sistema é baseado em regras e como em tudo que é baseado em regras, algumas podem ser contornadas; outras podem ser quebradas.“.

Libertar a mente é aprender a aprender; é aprender que O Sistema pode – e deve – ser questionado. Nenhum opressor quer que seus oprimidos sejam educados assim, o que torna esse tipo de pedagogia radical e um ato revolucionário. Além de Morpheus e dos outros humanos, Neo também aprende com o Oráculo, uma mulher negra que sabe de tudo (ou como ela diria, o bastante).

Nós só descobrimos no segundo filme que ela na verdade é um programa, ou seja, que ela pertence à classe dos opressores. Mas ela é diferente. Ela é uma aliada dos humanos. Um opressor que conhece e entende o mecanismo de opressão e não concorda com ele. O Oráculo é o ponto de apoio dos humanos, a ajuda externa que movimenta a revolução.

paulofreire

Por fim temos os agentes que existem para garantir que O Sistema continue funcionando, para que ninguém queira sair ou caso saia seja eliminado. Em outras palavras, os agentes fiscalizam os humanos para que não saiam da linha e garantem que a opressão se perpetue. Entre eles, temos um agente em particular, o Smith, que não quer mais ter que fazer esse trabalho. Ele quer eliminar todos os revolucionários para não ter mais que conviver dentro do Sistema com os oprimidos.

Soa familiar? 😉

É interessante que especialmente no primeiro filme Neo é particamente um coadjuvante. Ele só realmente assume seu lugar de personagem principal quando ele toma a decisão de entrar na Matrix para salvar Morpheus: são 20-30 minutos em que ele é realmente um agente da revolução.

E este é o maior paralelo entre o filme e Pedagogia do Oprimado: não adianta apenas aprender a aprender, a libertar a sua mente se você não colocar em prática – realizar a praxis para aplicar o que foi aprendido, rediscutir / reavaliar com base na experiência e voltar para a prática.

A praxis leva a luta; a luta leva a revolução; e a revolução leva a libertação.

morpheusss
Cedo ou tarde você vem entender, assim como eu entendi: Existe uma diferença entre conhecer o caminho e trilhar o caminho.

***

Wake Up fala sobre o movimento de direitos civis americano, que tinha como objetivo garantir aos negros e negras os mesmos direitos civis que a população branca, e sobre a reação do governo Americano, na figura do FBI. Na música Malcom X e Martin Luther King Jr são enaltecidos como as pessoas que “deram poder aos que não tinham. E então veio o tiro“.

The Matrix Of The Oppressed, parte 1 – 1999

Este é o primeiro post de uma série sobre a Trilogia Matrix e como eu passei a encarar o filme depois de ter lido Pedagogia do Oprimido. A segunda parte já está disponível.

Em Abril de 1999, alguns meses depois de ter feito vestibular para ciência da computação na UFPE, eu fui ao cinema assistir o filme que eu mais gosto até hoje: The Matrix. Parecia ser só mais um filme de ação onde o mocinho iria destruir o mal com lutas de kung-fu e armas e com todo mundo vestido de preto.

(se você nunca viu o filme, recomendo que pare agora mesmo e assista. Vão ser duas horas bem gastas do seu tempo.)

Realmente tinha tudo isso e já naquela época era bem mais para mim. Dois aspectos ficaram comigo nesses anos todos até eu mudar a visão que eu tinha sobre o filme.

Humanos como fonte de energia

4358575519_7527ed9b46

A imagem do Morfeus segurando uma pilha ao explicar para Neo qual era o propósito dos humanos pós dominação das máquinas foi chocante para mim. Mais do que as lutas, a filosofia e a possibilidade de aprendizado instantâneo, humanos como pilhas mexeu comigo porque ele tirava não só a liberdade da humanidade como também sua capacidade de pensar e agir em função da sua situação presente.

Naquela época eu não conseguia relacionar isso com nada na minha vida ou na vida de um modo geral porque era muito óbivio que todos tínhamos o direito de pensar, todos éramos livres e todos podiam atingir seus objetivos se se esforçassem (sim, eu acreditava em meritocracia e me achava um bom exemplo dela), mas mesmo assim eu não conseguia afastar a idéia de que isso podia acontecer no futuro.

Aprendizado instantâneo

f22c50f29387e1461274eb73ae3a329e97e3aa09ac8dffee9218e017cd6c8b99

Ok, não era exatamente instantâneo, mas aprender todas as artes marciais conhecidas pelo homem em 10-12h é bem rápido :). No filme os humanos livres conseguiram hackear a porta de entrada usada para gerar a Matrix na mente das pessoas para  aparenderem qualquer coisa que quisessem. Ou melhor, que pudesse ser expresso como um programa de computador (essa distinção é importante).

Esse foi de longe o aspecto do filme que eu mais discuti, principalmente entre pessoas da área de computação. Programar aprendizado em uma pessoa era uma idéia de extrema aceitação entre nós porque ganharíamos tempo ao poder aprender tudo rapidamente. Por que haver mais testes e provas se era só plugar o conhecimento? Por que ir pra uma universidade se o conhecimento estaria disponível num instante?

Não era incomum nas minhas discussões assumir que a Matrix era verdadeira e que aprenderíamos a sair dela, hacker nossos plugs e nos libertar da obrigação de investir em adquirir conhecimento. Mas isso era obviamente uma besteira e ninguém realmente pensa uma coisa dessas.

***

Eu já reasisti o filme e os outros dois da trilogia diversas vezes e eles ficam melhores a cada revisita. Com o tempo fui pegando outros detalhes mas nada muito profundo. As duas sequências são mais difíceis de gostar e eu mesmo só passei a apreciá-las após ler explicações sobre a filosofia por trás da trilogia.

(em resumo, a trilogia é uma estória de criação, mas a maior parte dos elementos vem das histórias de criação hindu/budista e como no ocidente as estórias de criação são todas baseadas nas criações judaicas/cristãs muito se perde da trilogia sem esse conhecimento).

Foi só depois de ler Paulo Freire que eu finalmente tive uma visão bem mais interessante do filme. Mas isso fica para a próxima parte 😉

A mensagem da esquerda é difícil

Em uma das minhas muitas conversas com meus colegas de esquerda, um deles, durante uma conversa sobre partidos e ativismo, apontou-me algo que sempre passou batido: a direita tem um discurso muito fácil de digerir em qualquer momento (crise ou abundância). Já a esquerda mal tem um discurso que faça sentido na abundância, na crise então é praticamente inútil.

Quando se está imerso em um determinado pessamento ideológico tudo é óbvio. Então, para mim era óbvio que o discurso da esquerda não só fazia sentido como era fácil de entender e explicar. Mas o mesmo colega, na mesma conversa, ressaltou que conversamos por mais de uma hora e não tínhamos sequer concordado quais partidos representam a esquerda, quais são os temas políticos alinhados com os ideais de esquerda, quais são os ideais de esquerda, qual a melhor forma de fazer ativismo político para avançar as políticas de esquerda e…. acho que deu pra entender, né?

Talvez a única coisa que ainda é exclusivamente associado com esquerda é a idéia de classes, sejam econômicas ou sociais. E é justamente aí, como me explicou um outro colega, que reside a dificuldade em criar uma mensagem fácil para que todos possam entender as idéias e políticas de esquerda: classe (e luta de classes) é bem difícil de entender quando o liberalismo já incutiu em nossas mentes que ações individuais são as que realmente importam.

Vejam como funciona bem o discurso liberal: “faça o melhor para você mesmo (seja individualista e egoísta) que o mercado livre vai funcionar e todos irão se dar bem.”, parafraseando de forma ultra-simplicificada Adam Smith, o deus da economia. E veja que isso funciona nos tempos das vacas gordas e magras. Nos tempos das vacas gordas tem dinheiro sobrando e tudo mundo tem mais acesso ao mercado e chances de progredir. Durante a época das vacas magras, quem já tem acesso tem mais chance ainda de aumentar a sua participação no mercado. E quem não tem, bem, esse não fez o sufuciente para entrar, mas se continuar tentando e se esforçar mais ainda, eventualmente consegue. Em uma palavra: meritocracia.

E qual é a mensagem da esquerda? Aqui vai a minha interpretação: “Nós todos fazemos parte de múltiplas classes e para que todos possam se dar bem é preciso que todas as classes se dêem bem. Embora progresso individual seja importante e deva ser valorizado, ele é secundário ao progresso das classes”. O que eu tô querendo dizer com isso? Pensa aí uns 5-10 minutos e depois continua lendo.

***

Foi difícil, né? Mas eu aposto que você pensou em impostos, no papel do Estado como “gestor” do dinheiro público e em políticas afirmativas (Bolsa Família, Prouni, FIES, Pronatec, etc) que visam investir esse dinheiro em quem tem menos.

Veja, de cara você precisou pensar em 3 conceitos diferentes (impostos,  papel do Estado e políticas afirmativas) para a mensagem começar a fazer sentido. Não é que a mensagem liberal não implique em pensar nestes conceitos, mas eles são secundários ao entendimento dela enquanto eles são primordiais para começar a discutir a validade da mensagem da esquerda.

(e isso porque eu tô simplicificando. Anarquistas, que estão ainda mais a esquerda, não aceitam o estado ou qualquer tipo de hieraquia política e querem um governo feito pelas pessoas. Como? Bom, isso depende da corrente anarquista e é assunto para um outro post.)

E isso sem falar em como é difícil aceitá-la. Nos momentos de abundância, existe progresso individual e de classe, mas o progresso individual é potencialmente menor porque você aceita ter menos progresso para que a classe toda progrida – por exemplo, em vez de “gastar” com políticas afirmativas o Estado poderia reduzir impostos. Nos tempos de crise, aceitar ter ainda menos progresso individual para que a classe inteira não seja massacrada fica mais difícil, principalmente se há boas chances de você progredir bem durante a crise.

Empatia e solideriedade são dois princípios necessários aos ideais de esquerda. Você não consegue aceitar classe se você não tem solidariedade pelos que pertencem a sua e você não consegue aceitar políticas afirmativas se você não tem empatia pelas classes menos abastadas, social ou economicamente. E foram justamente estes dois conceitos que o liberalismo estirpou das nossas mentes e substituiu por “faça o melhor para você e tudo funcionará”.

Hoje existem representantes de esquerda que entenderam isso mas parecem achar que empatia e solidariedade são um fim em si mesmo. Esses são os que eu (e alguns colegas) carinhosamente apelidei de esquerda empática ou esquerda sarau. Eles tem os ideais de esquerda mas acham que empatia e solidariede são necessários E suficientes para mudar o mundo. Não são, nunca foram e tudo indica que nunca serão pois os 10000 anos da história da humanidade são a história de dominação de povos e civilizações.

Saraus, beijaços, mamaços, marcha das vadias, são todos movimentos necessários para disseminar ideais de classe, mas sem ativismo, sem luta política – por exemplo, organizar a classe para votar em conjuntos de veradores e deputados que aceitam classes – isso não passará de carnaval fora de época, que acaba quando elegemos câmaras cada vez mais conservadoras.

A caridade dos opressores

Uma lembrança recorrente da minha infância/pré-adolescência em Recife era eu aprendendo que devia ignorar os meninos de rua que vinham pedir esmolas no meio da rua ou na janela do carro dos meus pais. Eu morei nos EUA dos 3 aos 8 anos de idade e para mim foi estranho saber que existiam crianças que não tinham uma casa para morar e por não ter o que comer tinham que pedir aos outros.

Todos os meus amigos da escola no Brasil aprenderam o mesmo: não eram crianças que moravam nas ruas, eram pivetes que pediam dinheiro e se você não tomasse cuidado eles iam te assaltar e até podiam te cortar. Eram menos que gente e por isso eu não precisava sentir empatia por eles. Afinal de contas, a culpa não era minha que eles estavam naquela situação.

Meus avós paternos tinham por hábito fazer doações de roupas e comida para a igreja para que ela então distribuísse para “os necessitados”. Não era dinheiro para as pessoas para que elas podessem decidir o que fazer com ele, eram coisas para os necessitados.

Claro que na época eu não via dessa forma. Por outro lado, eu nunca foi muito ligado a caridade. Isso era algo que me incomodava muito, principalmente quando eu ainda procurava conforto em algum deus ou religião. Todas as vezes que fiz o que aos olhos dos outros era considerado caridade eu não me sentia bem: ao contrário, eu me sentia pior por ter feito.

Nenhum texto religioso, nenhuma misssa ou prece, nenhum estudo sobre espiritismo conseguia fazer eu me sentir bem praticando caridade. Eu precisei ler Pedgagogia do Oprimido para entender por que eu me sentia assim. Em particular este trecho da sessão A Contradição Opressores-Oprimidos: Sua Superação foi o que mudou a minha percepção:

(..) Estes, que oprimem, exploram e violentam, em razão do seu poder, não podem ter, neste poder, a força de libertação dos oprimidos nem de si mesmos. Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos. Por isto é que o poder dos opressores, quando se pretende amenizar ante a debilidade dos oprimidos, não apenas quase sempre se expressa em falsa generosidade, como jamais a ultrapassa. Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que a sua “generosidade” continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça. A “ordem” social injusta é a fonte geradora, permanente, desta “generosidade” que se nutre da morte, do desalento e da miséria.

Daí o desespero desta “generosidade” diante de qualquer ameaça, embora tênue, à sua fonte. Não pode jamais entender esta “generosidade” que a verdadeira generosidade está em lutar para que desapareçam as razões que alimentam o falso amor. A falsa caridade, da qual decorre a mão estendida do “demitido da vida”, medroso e inseguro, esmagado e vencido. Mão estendida e trêmula dos esfarrapados do mundo, dos “condenados da terra”. A grande generosidade está em lutar para que, cada vez mais, estas mãos, sejam de homens ou de povos, se estendam menos, em gestos de súplicas. Súplica de humildes a poderosos. (..)

Eu não me sentia bem fazendo caridade porque eu não sentia empatia por quem eu fazia a caridade. E a razão era muito simples: eu sou o opressor da pessoa com a qual eu era caridoso e quem é opressor necessariamente não considera quem ela oprime como um igual, como um pessoa.

No Brasil, a herança escravocrata torna essa opressão muito mais fácil de assimilar. Quem era menos aprendia logo cedo seu lugar e se tentasse ultrapassar a linha era castigado. Em outras palavras, nós ainda somos escravocratas. É só olhar as relações entre chefes e funcionários. Entre os que sempre tiveram acesso ao consumo e os que passaram a ter recentemente. Entre patrão e empregada doméstica. Entre alguns pastores e seus fiéis. Entre os diplomados e não diplomados. Entre alguns médicos e pacientes. Entre pessoas do Sudeste e do Nordeste do país. Todo mundo sabe o seu lugar e quem tenta sair dele é repreendido não só pelos opressores mas também pelos próprios oprimidos.

Reconhecer que somos escravocatas é o primeiro pequeníssimo passo para, enquanto sociedade, podermos entender por que consideramos algumas pessoas como menos que gente, por que consideramos cotas racias racismo inverso, porque sequer consideramos que racismo inverso possa existir, por que não aceitamos que mulheres possam abortar, por que não aceitamos que gays possam casar, que sequer possam expressar-se como quiserem.

Entender isso me faz, de início, me sentir ainda pior. Nunca é fácil se reconhecer como um opressor porque daí em diante você tem duas opções. Ou você continua conscientemente oprimindo ou você toma a decisão de conscientemente mudar o tempo todo. E mudar o tempo todo é também o primeiro pequeníssmo passo para “lutar para que desapareçam as razões que alimentam o falso amor”.

Ela não tem berço

Eu estou lendo o livro A ralé brasileira: quem é e como vive, do Jessé Souza. Ainda não terminei mas tive uma revelação lendo as primeiras 150 páginas: quando uma pessoa diz que “ela não tem berço”, ela está certa.

Jessé, em seu livro, argumenta que apesar de termos uma nova classe média econômica, as pessoas que passaram a pertencer a ela não compartilham dos mesmos valores associados a classe média social. Valores esses que nunca são ensinados em escolas, trabalho ou convivência social ampla.

Valores como auto-disciplina, concentração, leitura, paciência (coletivamente chamados de capital cultural) são ensinados no seio da família e passados no convívio familiar. E são esses os valores que uma pessoa de classe média necessita para conseguir se dar bem na escola e para depois se dar bem no trabalho. Em outras palavras, a classe média social é construída de forma invisível.

(aqui vale uma rápida tangente: o lulopetismo é muito criticado pela esquerda não apenas pelas alianças que fez com a direita mas por ter fomentado o consumo através da ascenção de milhões a classe média sem ao mesmo tempo ter criado condições para que essas pessoas investissem no capital cultural. Embora essa crítica seja válida, não é possível desconsiderar a possibilidade de consumo, que faz parte da vida dos cidadões de classe média, como irrelevante e o Jessé pontua isso nos seus livros).

Jessé vai mais além nessa explicação. Ele diz que quem ascendeu a classe média econômica consegue agora comprar o tempo livre para a família, que é o mesmo privilégio da classe média social. Mas como não aprendeu os valores da classe média social, esse tempo não necessariamente é usado para investir no capital cultural que daria a essas famílias condições de se dar bem nas escolas e trabalho.

Voltando ao título, fica óbvio porque a frase é correta: ela deixa claro que temos classes sociais e que elas são invisíveis. A parte menos óbvia é que por ser invisível justifica a meritocracia, pois se você tem as mesmas condições econômicas que eu então eu conseguir mais do que você é necessariamente mérito meu.

Nesta entrevista, Jessé discute o assunto os principais pontos do seu livro e de outros dois que complementam a análise. Vale a pena assistir e depois ler os livros.

Todo homem é um estuprador em potencial

Eu falei rapidamente no post sobre Pedagogia do Oprimido que eu agora consigo entender, embora não necessariamente concordar, com os vários posicionamentos de grupos minoritários. Mas um dos mais polêmicos que eu entendo e aceito agora é de que eu sou (e todos os homens são) estuprador(es) em potencial.

Esse posicionamento foi difícil de digerir e aceitar porque eu, pessoalmente, me considero uma pessoa de boa índole, que tenta fazer o melhor, blá blá blá. Mas nada disso importa quando uma mulher que não me conhece me ver na rua. As únicas coisas que ela sabe de mim nesse momento são que eu tenho um pênis , que provavelmente sou mais forte que ela e que se eu quiser posso estuprá-la e sair com grandes chances de não ser punido a curto, médio e longo prazo.

Porque, afinal de contas, que justiça vai querer me condenar exemplarmente por um acontecimento de 20 minutos, né?

Estupro é um mecanismo de dominação e opressão e que é doutrinado como aceitável no processo de masculinização dos homens e de feminilização das mulheres. “esse menino vai ser pegador”, “segurem suas cabritas que meu bode tá solto”, “faça seu papel de homem”, “quando ela diz não, ela tá fazendo doce”, são coisas que eu (e todos os homens) escuto(amos) desde criança. E que é reforçado por todos e em tudo, como em anúncios de cerveja e pornografia.

Às meninas é ensiando a ter cuidado, “porque homem é assim mesmo e se você não se cuidar a culpa é sua”. A parte da culpa nem sempre é dito de forma explícita, mas frases como “como você estava vestida?”, “o local era escuro?, “tava sozinha?” deixam muito claro quem é a responsável pelo ato.

Então, o assunto é polêmico porque mexe na estrutura da sociedade. Admitir-se como um estuprador em potencial é reconhecer que o processo de masculinização e feminilização está quebrado; é reconhecer que a opinião que importa aqui é a do oprimido, a opinião da mulher, que vai sentir medo de qualquer homem quer cruzar com ela na rua não importando o quanto de esquerda e empático ele seja.