Eu escrevi esse texto no facebook no dia 17 de Setembro de 2018. Resolvi incluir ele aqui porque fala da organização de uma casa i.e como o trabalho é dividido. Deixei a parte sobre Bolsonaro porque ainda acho uma ligação interessante, mas o principal do texto é realmente sobre trabalho, seguindo a linha do texto anterior.
Para quem não leu, espero que goste! Para quem já leu, comenta aí o que você acha dele quase 1 ano depois 😉
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Vocês já pararam pra olhar como uma casa é organizada? Quem é responsável por fazer a comida, limpar, organizar o dia-a-dia de quem mora nela? Em particular no Brasil, existem 3 grande categorias de organização e entendê-las que pode ser mais um elemento para explicar por que candidatos como Bolsonaro recebem tanto apoio apesar dos problemas óbvios.
A primeira categoria é a da Tradicional Família Brasileira (daqui pra frente TFB), onde o homem trabalha e a mulher fica em casa e é responsável por 100% do funcionamento da casa.
A segunda envolve uma empregada doméstica (sempre uma mulher e em sua maioria, parda ou negra) que recebe um salário para ficar na casa 8 horas por dia limpando, cozinhando e arrumando (daqui pra frente EMPD). Tipicamente a administração/organização ainda fica a cargo da família (da mulher em quase 100% dos casos) então a empregada apenas recebe as ordens e as executa.
A terceira é quando todos que moram na casa dividem as tarefas, discutem quem vai fazer quais tarefas para a casa além das suas próprias, como e quando. Uma espécie de cooperativa de trabalho (daqui pra frente COOP). Essa organização é bem comum em repúblicas e se você fizer um esforço mental, pode considerar que pessoa que moram sozinhas também se encaixam nessa categoria, já que precisam fazer tudo na casa.
Claro, existem várias nuances aí. A TFB e a COOP podem contratar uma faxineira que vem 1-2x por semana para ajudar. Nas COOP, alguém pode ficar responsável por decidir tudo sobre a organização e executar menos tarefas que os outros para compensar. O homem pode fazer algumas tarefas na TFB mas considera como ajuda, não divisão. As possibilidades de combinações são numerosas, mas vamos focar nas 3 grandes categorias.
O castelo do homem
Na TFB, o homem não trabalha em casa. Ele traz o dinheiro pra casa e para conseguir ter tempo para isso ele precisa que a mulher trabalhe para a casa. Ela faz o trabalho necessário para ela e para o marido (e os filhos se tiver). O marido chega em casa e espera encontrar tudo “em ordem”, pois está cansado e não tem mais energia para lidar com a casa.
Já repararam como isso é semelhante a uma sociedade feudal? Sim, aquela mesma dos reis com os servos que você (espero) aprendeu na escola. O rei não trabalhava (nem os lordes, os barões, os duques, etc). Eles tinham vários servos que moravam em suas terras. 3 dias por semana os servos trabalhavam nas terras do rei e o que fosse produzido era de propriedade do rei. Nos outros 3 trabalhava num pedaço de terra cedida a ele pelo rei/lorde/etc e o que fosse produzido era todo dele e no 7 dia ele descansava
Transpondo para a TFB, a mulher realiza o trabalho necessário (cozinhar, lavar, passar, limpar, cuidar dos filhos) para ela se manter e mais um extra em cada uma dessas atividades que é a parte do homem, mas que ele não vai fazer porque já passou o dia todo fora trabalhando.
E o que ela recebe em troca? Uma casa, uma vida estável, dependendo da condição econômica da família ela compra produtos, viagens para ela. Enfim, ela ganha algo do marido, seu “senhor feudal”, mas não um salário. Ela não é paga para trabalhar: é esperado que ela trabalhe e em troca ganha uma vida (supostamente) estável.
Capitalismo doméstico
Com o advento das mulheres na força de trabalho, de quem era agora a responsabilidade de trabalhar na casa? A herança escravocrata nossa trouxe a solução: mão de obra assalariada e muito barata que precisa de dinheiro e que pode trabalhar nesses serviços. Na EMPD, a casa é organizada como uma empresa, onde uma empregada é paga para trabalhar nela. Todo dia ela trabalha de 8 horas (as vezes mais), realizando todas as tarefas que os donos da casa não tem mais tempo para ou não querem fazer e depois volta para sua casa, deixando todas as ferramentas necessárias para o trabalho na casa do(a) patrão(oa).
Historicamente empregadas domésticas são a classe trabalhadora mais explorada no Brasil, apenas recentemente adquirindo direitos comuns a outros trabalhadores (FGTS, horas extras). É considerada uma categoria de trabalho “menor” pois faz trabalho não-especializado, manual, o que nunca foi valorizado no Brasil porque esse era o trabalho feito pelos escravos.
Uma variação aqui seria a da faxineira: os donos da casa realizam trabalho doméstico mas contratam uma empregada que realiza uma parte do trabalho 1-2x por semana, para diminuir o peso do trabalho.
Cooperativa de trabalho
Se você já morou numa república de qualquer tipo, esse é provavelmente o modo de organização da casa que você conhece: as tarefas são divididas entre os moradores da república, todos fazem a sua parte (o que você precisa + o que foi acordado do trabalho compartilhado) e todos discutem o que precisa ser feito para manter a casa em ordem.
Algumas famílias tradicionais também se organizam assim, mesmo que ambos trabalhem fora. Isso vai se tornar cada vez mais comum na medida que crises econômicas forcem a demissão das empregadas domésticas das casas de classe média e a mulher não aceite fazer tudo sozinha.
Cooperativas de trabalho funcionam exatamente desse jeito, onde todos os trabalhadores precisam decidir como as tarefas de produção são divididas, o que vai ser feito com o lucro obtido pela cooperativa através do trabalho de cada indivíduo. Pessoas que moram sozinhas se enquadram nessa categoria também, apenas elas tomam as decisões sozinhas.
Feudos, empresas e autocratas
Se você viveu em uma casa onde a organização era TFB ou EMPD, então você reconhece como normal que alguém é sempre responsável por toda a organização doméstica. É normal que você não tenha que fazer isso porque sempre teve alguém que fizesse para você. É normal que ao casar esteja implícito a sua posição na organização da casa. E é normal que esse tipo de trabalho seja considerado “inferior”.
Mudar essa normalidade exige um esforço grande e reconhecer que o que é normal não é necessariamente o melhor. Quem é forçado a mudar vai sempre resistir, principalmente se isso implica assumir a posição considerada inferior. Então uma reação natural a isso é procurar respaldo externo. E é aí que entra o inominável, o #elenão, o Bozo, o “dei uma fraquejada e tive uma menina”. Ele representa a legitimação dessa resistência contra a “desnormalização” da sociedade. A resistência “contra os valores da família”.
O fato dele ser racista, homofóbico, misógino é só uma confirmação de que ele considera TFB e EMPD o modo normal de se viver e qualquer outra coisa que desvie disso é colocar em risco o posicionamento normal da sociedade. Então muitos dos seus apoiadores vão racionalizar as declarações racistas, homofóbicas e misóginas dele de alguma forma porque a manutenção de uma organização normal é mais importante. Ou não, vão simplesmente concordar e dizer que é isso mesmo, negro é tudo marginal mesmo, gay tem mais é que apanhar pra virar homem e mulher tem mais que lavar a louça e dar graças a deus que tem um marido e uma casa.
Eu falo da organização da casa porque tudo tem influência em tudo e ao ignorar a casa estamos ignorando uma grande fonte de normalização de hierarquia e autocracia. Quem consegue fazer a transição de TMB ou EMPD para COOP é porque conseguiu passar pela sua resistência ao normal e aprendeu algo novo sobre sociedades. Muitas vezes essa transição acontece em paralelo com as outras transições que tornam a pessoa menos racista, homofóbica e misógina e uma influencia a outra.
Por exemplo, o divórcio como instrumento legal foi uma das maiores forças transformadoras da organização da casa. Mulheres terem o poder de partir da palavra (“não quero mais viver assim nesse casamento”) ao ato (“assina o divórcio”) precipita essa mudança na organização da casa e é esse tipo de poder que #elenunca é contra que minorias tenham. Porque se mulheres podem mudar o que é normal, imagina quando gays, negros, trans também puderem?